sexta-feira, 16 de julho de 2010

Arte na escola

SOBRE EDUCAR, ENSINAR E APRENDER ARTE

No momento em que é publicada uma alteração da LDB tornando obrigatório o ensino de arte na educação básica no Brasil, sinto-me compelido a tocar num problema que já há algum tempo circula entre arte-educadores com quem converso.

O ensino de arte na maioria das escolas pelo que tenho observado, tanto nos cursos de formação continuada de professores ou no relato das práticas dos estudantes de pedagogia que já atuam na educação básica com quem mantenho contato, tem oscilado entre dois pólos: ou adota-se as concepções chamadas idealistas, da livre expressão às suas extensões tecnicistas, ou adota-se a tendência mais recente de valorização da cultura chic, todas elas centradas na figura do professor, sem que se valorize o aspecto relacional entre adultos e jovens e que leve em consideração, nesta relação, as dimensões subjetivas e a experiência cultural vivida tanto dos estudantes como dos professores de arte.

As concepções de arte na educação de que falamos, genericamente, produziram práticas que alojam uma dicotomia entre o educar e o ensinar, entre o ensinar e o aprender, abrigando fissuras, muitas vezes abismos, entre a expressão artística pessoal, o estudo de referências culturais e o estudo das linguagens. Ainda vemos em sala de aula de muitas escolas, no trabalho com artes visuais práticas que fazem uso mecânico da cópia, sem que se saiba o quê e para quê está se copiando; a livre expressão sem que haja a interlocução professor-estudante no processo de trabalho; e a pesquisa sobre elementos da cultura visual, sem que minimamente se leve em consideração a identificação individual do estudante com os conteúdos visuais pesquisados para não dizer dos fatos da própria experiência pessoal. O triângulo está fendido, três pontos de apoio sem conexão.

Até as nomenclaturas que conceituam as diferentes abordagens de arte na educação, traduzem os diversos compartimentos que pouco se comunicam e, por vezes, se antagonizam: Educação através da arte, Arte-educação, Ensino de arte, Cultura visual. Opto por não tentar definir cada uma dessas concepções, tarefa para historiadores da educação, mas tentar refletir sobre os conceitos mais gerais de educação e ensino no âmbito da arte, justamente para pensar as suas inter-relações e implicações para o adulto professor e o jovem.

Com estas observações até aqui fico a imaginar por que em muitas salas de aula os adultos não estão reconhecendo o papel de sua geração em relação às novas que vem chegando. Há mais de dez anos, os Parâmetros Curriculares Nacionais já apontavam o grande descompasso entre o conhecimento disponível sobre a criação artística da criança e do adolescente, sobre o ensino em Artes Visuais e o que realmente se pratica nas escolas. O ensino das artes visuais é o que historicamente está há mais tempo nos currículos oficiais (mais que todas as outras linguagens da arte)e, apesar disso, não temos sido capazes de praticá-lo ultrapassando velhas idéias e concepções arcaicas.

Um dos tópicos que pode ser levado em consideração para estas reflexões, está na própria natureza da arte e na forma como ela é compreendida na escola. Embora a arte seja algo de difícil definição, por que seu significado varia em função das características de diferentes épocas e grupos sociais, ela esta localizada no espaço de intersecção entre o indivíduo e o grupo, entre o que é particular e que é comum: a arte engloba e articula de maneira complexa o aspecto subjetivo e o cultural. O problema é que, quando a arte torna-se uma disciplina escolar, a cisão entre estas duas dimensões fica evidente, refletindo, de resto, a dicotomia da sociedade contemporânea entre corpo e mente, razão e sensibilidade, educação e cultura. Educar a sensibilidade, ensinar a cultura e dar voz ao cidadão são faces que se completam.

Urge renovar para não reproduzir. O termo renovar que tem tanto o sentido de fazer novamente como de fazer diferente, usado aqui como a possibilidade dada ao estudante de construir os significados para a sua experiência a partir do conhecimento acumulado pelas gerações anteriores fazendo-se outro. Ainda que isso não signifique transformar a sociedade ou reformar a humanidade, importa como exercício do seu direito de fazer escolhas dentro dos limites da sua própria vida. Esta tarefa exigirá, no entanto, coragem do jovem e generosidade do adulto.

SOBRE CORAGEM E GENEROSIDADE

Há uma sequência cinematográfica, parte da obra Andrei Rublev do cineasta russo Andrei Tarkovski, que já foi objeto de diversas interpretações nas discussões sobre o significado da arte , mas interessa-me aqui como metáfora para me ajudar a refletir. Segue a história:

Numa terra arrasada pela guerra, na Rússia do século XV, um jovem é convidado pelo senhor do reino a realizar a fundição de um sino, pois era este o ofício de seu pai que então jazia morto pela peste. O jovem dizendo saber todos os segredos da fundição, aceita a empreitada cujo risco, no caso de fracasso e não fazer soar a enorme peça, é pagar com a sua própria vida.

Um estado de tensão se apossa do jovem deixando-nos a dúvida se o que estamos assistindo é ousadia ou loucura. A tarefa é árdua para o jovem, que sofre em todas as etapas do processo: encontrar o barro adequado para o molde, juntar o metal necessário, modelar o sino, fundir o metal e preencher o molde. Em todas estas passagens é observado pelo personagem-título da obra, um monge e pintor em crise com o seu processo criativo. Ao final da sequência, em meio ao regozijo do povo pelas badaladas, o nosso personagem sucumbe à tensão e cai em prantos. Amparado por Rublev, Boriska, o filho do sineiro, diz assim: “Meu pai, nunca passou-me o segredo. Morreu sem me contar, levou-o para a cova, aquele patife tratante.”

Esta é uma imagem de coragem: construir por si mesmo o próprio percurso e descobrir os segredos do caminho é coisa que uma pessoa só pode realizar por si mesma. O pai do personagem não contou a ele o segredo por que este só pode ser descoberto no caminho. O que Boriska havia aprendido o foi no convívio com o labor de seu pai, mas resignificado no seu próprio trajeto. Trilhar o caminho era o segredo.

Entretanto é importante observar que a coragem do adolescente prescinde da educação para existir, ou acaso não necessitará de coragem aquele que se envolve na delinqüência? Os recentes índices de morte por assassinato de adolescentes no Brasil atestam a dramática falta de alternativas para os atos de coragem. Por outro lado, “a experiência de vida” do adulto, transformada em ímpeto pedagógico, só levará ao conformismo, estéril de novas possibilidades de vida, pois “o indivíduo insensível à experiência é carente de sentido e imaginação” como nos diz Walter Benjamin.

Para que a educação e o ensino sejam felizes em alguma medida, será necessário aos adultos abrir espaços para que as novas gerações exercitem a sua própria fala e façam suas próprias escolhas, exercendo este adulto uma pedagogia que possibilite o desenvolvimento da sensibilidade e a construção de conhecimentos. Unir algo que se aprende mas não se ensina com algo que se ensina mas não se escolhe pelo outro. A coragem do jovem tem muita a lucrar com a generosidade do adulto.

São Paulo, 14 de julho de 2010, na data de publicação da Lei Nº 12.287/2010
Paulo Nin Ferreira




Boriska, o filho do sineiro em "Andrei Rublev", filme de Andrei Tarkovski, URSS, 1966.


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"O jovem vivenciará o espírito, e quanto mais difícil lhe seja conquistar algo grandioso, mais facilmente encontrará o espírito em sua caminhada e em todos os homens."
Walter Benjamin

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