Alguns artistas contemporâneos percebem que há na etapa inicial da vida uma compreensão sensível do mundo que criam os caminhos para os significados mais profundos da sua existência e que de alguma forma é reafirmado na sua arte. Há um momento antes da palavra (a palavra infância vem do verbo latim fare no particípio passado: fans. In-fans = sem fala), que abriga uma percepção aguda das coisas que muitos adultos já deixaram no esquecimento, e por isso simplesmente não são capazes de perceber o que vai pela cabeça das crianças. Acho isso importante para se pensar que o ensino de arte para a infância fica empobrecido se não levar em conta esta maneira de estar no mundo, experimentando materiais, olhando as coisas de uma maneira particular. E aí o que vemos são as chamadas "releituras", a cópia, o treino motor.
Selecionei aí abaixo três textos de artistas brasileiros que falam deste universo esquecido.
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“Remexo com um pedacinho de arame nas
minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro:
entre conchas, osso de arara, pedaços de pote,
sabugos, asas de caçarolas etc.
E tem um carrinho de bruços no meio do
terreiro.
O menino cangava dois sapos e os botava a
puxar o carrinho.
Faz de conta que ele carregava areia e pedras
no seu caminhão.
O menino também puxava, nos becos da sua
aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes.
Era sempre um barbante sujo.
Eram sempre umas latas tristes.
O menino é hoje um homem douto que trata
com física quântica.
Mas tem nostalgia das latas.
Tem saudades de puxar por um barbante sujo
umas latas tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem
douto encomendou uma árvore torta —
Para caber nos seus passarinhos.
De tarde os passarinhos fazem árvore nele.”
Manoel de Barros
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“Mas talvez não importe tanto fabular sobre a origem da linguagem quanto compreender a enorme cisão que ela causou. Pois uma vez amarrada esta corda entre todos, uma vez expulsos ou mortos aqueles que não quiseram valer-se dela, não há mais qualquer possibilidade de retorno, pois é próprio da mais estranha das ferramentas, da mais exótica das invenções (a linguagem), parecer tão natural e verdadeira quanto uma rocha, um cajado ou uma cusparada. Este é seu verdadeiro fundamento, sua digamos, astúcia — a de substituir-se ao real como um vírus à célula sadia. Há aí uma potência de esquecimento que não pode ser diminuída, uma armadilha na agonia que serviu a alguns (e não a todos), sacrificando violentamente àqueles que não a utilizaram.
Restam hoje apenas algumas pistas desta origem ou, para dizer de outro modo, alguns sinais fora da linguagem. Parece uma experiência cotidiana, ainda acessível a todos, estranhar subitamente o som de determinada palavra como demasiado abstrato ou verossímil em relação àquilo que designa, e o velho jogo infantil de repetir indefinidamente um mesmo vocábulo até que perca completamente qualquer ligação com aquilo que procura indicar talvez queira nos conduzir, apenas, de volta a uma época em que cada coisa tinha seu peso sinestésico, e tanto a cor como o sabor como a imagem eram o índice livre para aquele pássaro flechado. A própria diversidade de línguas, absolutamente cômica pra quem as escuta sem entender, remete também à arbitrariedade de origem, a esta reunião primeva de feridos em busca de consolo e proteção que expulsou para longe, ou mesmo matou, os primeiros heróis mudos. Quando entramos em choque com algo inaceitável ou excessivamente belo e ficamos, literalmente, sem palavras, estamos recuperando esta etapa adormecida da nossa natureza.”
Nuno Ramos
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"Sou da família dos batráquios: através da barriga, vísceras e mãos, me veio toda a percepção sobre o mundo. Não tenho memória, minhas lembranças são sempre relacionadas com percepções passadas apreendidas pelo sensorial. Num lapso de segundo eu me sinto tomada pela quentura da mamadeira na palma da mão acompanhada pelo gosto do leite morno que desce devagar, deixando um rastro de bolhas atrás de si. Experiência esta, talvez a mais remota dentro da minha vivência, inscrita no meu passado, que se faz presente ainda hoje.
Havia uma tal incorporação e coesão neste instante que hoje só é comparável a esta sensação, me vem outro instante em que, me sentindo inteira, coesa, unida, me sinto como se estivesse de mãos dadas comigo mesma."
Lygia Clark
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